segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A Valsa dos Detectives

Carlos Carreiro é o artista plástico mais famoso de Portugal e simutâneamente é o mais esquecido. E porque a fama? Em 1989 assina a capa da “Valsa dos Detectives” (1989) da banda portuense GNR e desta forma entra pela porta adentro de milhares de pessoas e ocupa o seu imaginário. E porque o esquecimento? Carlos Carreiro é o maior crítico do tempo social e cultural que actualmente ussufruímos.
A exposição “Carlos Carreiro na Colecção de Carlos Carreiro” é um excelente resumo de mais de quarenta anos dedicados à pintura. Onde são perceptiveis diversos vértices, as obras dividem-se em dois niveis: tematico e narrativo sendo que estes conceitos se podem cruzar numa unica obra.
Na imagem narrativa mesmo que esta seja direccionada invarialmente para o absurdo, e não para o banal non sense, as obras ganham uma dimensão extraordinária. Como sucede com “Diálogo” (1981) em que impera o teatro do absurdo, e onde o espaço fruido é o vazio, algo que irá sofrer drásticas alterações ao longo da sua carreira. A forma que explora é o da pop extravagante, supremo kitsh, longe dos trabalhos gráficos de Warhol ou do estilismo B.D de Lichestein. Carreiro suplanta um e outro através de uma ironia atroz, de uma sabedoria que não se deixa seduzir pelo facilitismo, que apenas se revé no complexo se este for “lido” através da simplicidade.
Uma obra de claro pendor tematico é “Lagoa das Furnas” (1970), o contorno de uma estrutura arquitectonica, na parte inferior da tela, é posterior “janela” com vista para a lagoa das furnas, terra que viu nascer o artista em 1946. “A piscina da família Éclair (2ª versão)”, o centro do quadro é ocupado por uma piscina circular de interior, sobre o colchão flutuante um éclair relaxa, nas bordas da piscina outros dois éclairs molham-se sem se diluirem na água fetida a cloro, e um pouco afastados da piscina dois éclaires namoram. Poderá dizer-se que “novos ricos são má sorte ”? E o que move esta familia de éclairs? Toda esta encenação surreal revê-se no: “Compra aqui, compra aqui” . As suposições sobre uma obra que poderia ser um poster sobre a irracionalidade da existência pois espelha um bolo que substitui as pessoas, mas a família éclair será uma mera abstracção? “´… Depois dvd ddt pbx; Ketcup k7 kitchenette duplex; twist again colourful wonderful; Chegou o t2/t4 c/ garagem pró turbo sound disco; Sound discussão? Video-club joy stick midi high-tech squash & sauna; Compact d (compre aqui)…´”
“A importância do Leite” (1973) encontram-se as duas vertentes, anteriormente discriminadas: a narrativa e a temática. Uma sala de uma familia burguesa do século passado, acolhe uma vaca e a seu lado um homem aplica as mãos nas tetas e retira-lhes leite enquanto fala com três senhoras, uma das quais segura um objecto fálico, todas demonstram curiosidade pela actividade do leiteiro. Porém, uma outra mulher encontra-se sentada numa ponta do sofá, nos seus joelhos tem um livro, e observa as mulheres que questionam o leiteiro sobre a sua actividade. Ela encontra-se ladeada por um candeeiro sobre uma mesa de jogo, por cima do qual encontra-se um quadro com um pássaro vermelho, e sobre a sua cabeça está um relógio de pé. Há uma janela com vista para uma paisagem subaquatica, um outro elemento perturbador é aquele que surge a partir dos traseiros das curiosas, um espaço asséptico onde ratos da india recebem electro-choques.
O mundo animal cruza-se constantemente na obra de Carlos Carreiro como sucede em “Ausência” (1974) ou em “Senhor respeitavel profundamente preocupado com problemas de exploção Demografica”(1976), ambos têm o objectivo supremo de obrigar o espectador a rever-se no reino animal, e a partir deste reencontrar ou redescobrir o seu lugar na terra, a comunicação é realizada através da ironia que é levada ao extremo, denominado de sarcasmo.
As narrativas paralelas em “Quando a cor entrou na Família”(1982), do lado esquerdo da tela encontra-se uma familia sentada a uma mesa, a decoração é obra de um amante do Kitsch, mas obra é a preto e branco assumindo-se o negativo do lado direito do trabalho. Neste a familia triste ganha uma dimensão de jogo, através da cor surgem diversas dinamicas: uma mulher com um chicote impõe o ritmo a um homem de quatro. Sobre a cabeça da dominadora, um trans-humano que representa um cavalo, está sobre um baloiço. Um homem suspenso por cordas e com asas nas costas tem uma mulher a segurá-lo pelas costas, ela pretende segui-lo, aprisiona-lo. Um homem de costas para o espectador, com uma capa e botas de Robin Hood, olha através de uma janela rectangular para uma paisagem verdejante, de onde é apenas visivel, quatro pernas nuas, a cometerem um óbvio coito. Um homem, com roupas de corte de Luís XV tenta entrar ou sair por um quadro colocado na parede. Na boca de cena, uma mulher nua chora a morte do seu amado que é carne e osso em simultâneo, o seu rosto pertence a uma esfinge desenhada por uma criança.
O espaço encontra-se totalmente ocupado, numa vertente pós-rococó em “Paisagem muito Habitada” (1985), em que impera o excesso de informação, algo que o cérebro não tem habilidade natural para fruir rapidamente. A obra impõe-se através da sua natureza perversa, alicerçada numa clara vertente absurda, e que se reporta para uma dinamica construtivista e desconstrutivista.
As obras mais intrigantes são: “Cenário para uma Alegoria” (1988), “Paisagem com efeitos Especiais” (1993), “Interior Octopus” (1990). Remetem para um interior, mas não das visceras, antes o de um universo onirico de tão poético, que poderá reportar-se às “Vinte Mil Léguas Submarinas” de Júlio Verne. É de assinalar a mestria com que também compõe o espaço vazio, mas com origem numa flutuação indescritivel de tão bela.
“Valsa dos Detectives”, a poética é assim: “Tem medo do escuro tal criança sem futuro; É falso velhaco cobarde armado em duro; Vai pelo mundo guiado pela mão; Até depois de morto dá uma volta no caixão; Treme e vacila nem na cama está seguro; Teme que alguém o chame geme sofre de medo puro; Evita o olhar dos mortais que o rodeiam; esconde-se em mentiras que mesquinham serpenteiam; É só paranoia mania da perseguição; Desconfia de todos resulta da sua traição” . Rui Reininho faz o retrato do português emigrante, do português residente num bairro rico ou pobre ou remediado ou retornado ou sem abrigo, pouco importa, o certo é que é portugues. Na obra de Carlos Carreiro impõem-se três figuras, um casal que dança por entre uma paisagem luxuriante conspurcada por elementos vegetalistas e arquitctónicos. No lado oposto, uma mulher segura na mão esquerda uma ampulheta, que mede o tempo, os três personagens representados a azul revela-os como almas libertadas da asfixia terrena. Carlos Carreiro e Rui Reininho têm em comum o terem previsto uma sociedade de consumo selvagem, que criou valores a partir do dinheiro e de todos os critério a este associado. A mutação provocada pela cirurgia plástica, que impõe protéses nas mulheres para ficarem próximas das modelos que ocupam as passereles ou as revistas. O parecer passa a moeda de troca, o ser perde-se gradualmente no fim do século passado e ganha liberdade total no início do século XXI, “falha humana, falha humana do criador” ?
A obra de Carlos Carreiro é fruto de um espírito irrequieto que nunca abandonou a infância, que teve que se adaptar à natureza que o obrigou a crescer. Quando inicia uma obra, a liberdade transforma-se em travessuaras e são tantas que Carlos Carreiro abandona-se inconscientemente nas mãos do seu heterónimo, que jamais teve medo do futuro e disso é exemplo cada uma das suas obras incluidas em “Carlos Carreiro na Colecção de Carlos Carreiro”.


“Carlos Carreiro na Colecção de Carlos Carreiro- 1967/2010", de 26 de Novembro de 2011 a 29 de Janeiro 2012, Galeria Municipal de Matosinhos. 26 de Janeiro @ Matosinhos.


1ª Citação: REININHO, Rui, Líricas Come on & Anas (1982-2006),Palavra, Lisboa, 2006, p.46
2ª Citação: REININHO, Rui, Líricas Come on & Anas (1982-2006), Palavra, Lisboa, 2006, p.25.
3ª Citação: REININHO, Rui, Líricas Come on & Anas (1982-2006), Palavra, Lisboa, 2006, p.25.
4ª Citação: REININHO, Rui, Líricas Come on & Anas (1982-2006), Palavra, Lisboa, 2006, p.39.
5ª Citação: REINHINO, Rui, in Valsa dos Detectives, Falha Humana, Emi-Valentim de Carvalho, Lisboa, 1989.